quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Retratos da barbárie

(Artigo publicado originalmente no jornal Comércio do Jahu em 29/11/2007)

O caso da garota presa no Pará em uma cela com 20 homens e o desabamento no estádio Fonte Nova, em Salvador, são, em boa parte, o retrato possível do Brasil hoje. A eles somam-se mais algumas aberrações deste trem-fantasma tupiniquim como a epidemia de dengue, que cresce em vez de diminuir, a leniência com políticos descaradamente confessos de maracutaias com dinheiro público e o aparente desprezo pelo mínimo de zelo necessário com a população.
Parece que estamos condenados a eternamente oscilar entre uma sessão nostalgia da Idade Média e a ânsia por nos mostrarmos uma nação moderna e com os pés no futuro. A verdade é que agarramos o atraso com as duas mãos, pois abandoná-lo significaria romper com nossa herança colonial e deixar o conforto da casa-grande. Teríamos de aprender como nos sentirmos mais responsáveis por nossas próprias escolhas e agir de acordo com isso. Não é à toa que pesquisa recente mostrou a vergonha como o sentimento mais comum de 37% dos adolescentes brasileiros diante da política, ao mesmo tempo em que pouco ou nada se mobiliza para mudar o quadro que aí está.
Não fosse assim, jamais aquela adolescente teria permanecido por tanto tempo na cela no Pará, sendo ignorada mesmo por quem, da rua, a via pedir ajuda; não fosse assim, não estaria a maioria dos estádios brasileiros sem condições de oferecer segurança aos torcedores.
Existe também outro indicador pernicioso e ao mesmo tempo sem qualquer relevância, por ter se tornado tão comum: por aqui, prevenir ou agir para evitar que as coisas piorem é algo reiteradamente esquecido. Ou é mero acaso o fato de que no caso do estádio da Fonte Nova nada se fez diante das ava-liações que alertavam para os problemas, e agora se fala em implodir o local? Provavelmente, oito mortos e diversos feridos seja um preço ainda pequeno para tanta incompetência.
Essa aparente incapacidade de pensar as responsabilidades individuais e coletivas é algo tão entranhado nesta salada tropical em que nos transformamos que permite até mesmo o cinismo de quem deveria zelar pela chamada coisa pública. Enquanto finalizo este artigo, leio texto da governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, sobre o caso da adolescente mantida na cadeia. Ela diz que “no caso da adolescente, o governo tomou medidas imediatas”.
É ridículo e conduz a um raciocínio errado, pois parece que o único governo possível é o que existe nos gabinetes refrigerados, seja em Brasília, nas capitais estaduais ou em qualquer prefeitura. A polícia, se não pode ser chamada exatamente de governo, faz parte do Estado. E foi o mesmo delegado, um infeliz que levantou a suspeita de a garota ser mentalmente incapacitada por não ter “declarado maioridade”, que a manteve na cadeia. O Estado a manteve presa e a deixou ser estuprada pelos outros ocupantes da cela.
É também o Estado o único e principal responsável, por exemplo, quando não se cumprem normas mínimas legais para a dignidade do cidadão, como ao não se adequar o acesso de portadores de deficiência nas vias públicas – ou mesmo quando não se exige que empresas o façam em suas dependências. É o Estado a quem cumpre, além das campanhas contra a dengue, se for necessário forçar a entrada de agentes de fiscalização em locais onde eles sejam impedidos de trabalhar.
Perder a capacidade – ou jamais exercê-la - de avaliar e exigir respeito e eficiência por parte de qualquer governo revela, em parte, o grau de civilização a que chegou um povo. Não são necessá-rias grandes mobilizações, passeatas heróicas, enfrentamentos suicidas. Ações menores às vezes bastam, como participar do conselho escolar, utilizar ouvidorias e cobrar respostas dignas, além de procurar, se necessário, meios judiciais como as procuradorias. E, claro, fazer valer sempre algo tão simples quanto poderoso que é o voto.